... ou a tragédia grega revista em versão "western".
Um dos mais perfeitos filmes de sempre e uma fabulosa história de amor.
A tragédia que Stevens traz para o "western" [em larga medida, aparente] que é "Shane" está, desde logo, no confronto entre as forças históricas em presença, por trás dos "heróis" individuais e/ou familiares, digamos assim: os agricultores, símbolos de uma América que se sedentariza e estabiliza, tentando, de passo, enterrar 'fantasmas fundadores' [o genocídio dos povos locais, aliás, ausentes do filme---eu diria, até "significadamente ausentes" do filme!---mas também de algum modo, aqueles que co-protagonizaram activamente esse mesmo acto fundacional corporizados aqui nos criadores de gado, cuja expansão foi, em grande medida, a causa directa do extermínio dos índios dada a enorme amplitude do espaço necessário para as pastagens] e estes mesmos criadores de gado, subtilmente identificados, aqui, com o "Mal" no sentido em que dão corpo à sugestão de uma América primitiva, incapaz de fixar-se e "civilizar-se" finalmente e que tem, por isso, de ser, de alguma forma, real e simbolicamente eliminiada.
Não por acaso, é 'Ryker' quem contrata pistoleiros [Starret não contrata Shane: é Shane quem toma a defesa de Starret mas como uma "causa", em larga medida ditada por um amor impossível por 'Marian', uma interessantíssima personagem de 'amorosa impossível' muito bem defendida por uma já não muito jovem mas eficientíssima Jean Arthur].
Tal como não é por acaso que Shane tem de partir no fim: a morte de 'Wilson' [um extraordinário Jack Palance num dos dois ou três verdadeiramente grandes papéis da sua longa carreira: um dos outros seria no clássico "The Big Knife", de Aldrich, por seu turno, uma das grandes referências do naturalismo cinematográfico norte-americano]; a morte [a 'execução'!] de 'Wilson', dizia, como a de 'Ryker' não pode, em caso algum, ser integrada, ser assimilada, ser assumida, pelas forças que, no fim, triunfam: cumprido o seu papel de "anjo vingador", Shane, o próprio Shane, tem de ser afastado numa das mais impressivas despedidas da História do Cinema [das mais eficazes, em qualquer caso] com 'Joey'/Brandon de Wilde a gritar para o vazio o nome de um Shane que vai gradualmente desaparecendo na penumbra, desvanecendo-se numa noite sem fundo que é tanto real como, a meu ver, sobretudo, metafórica.
Repare-se, aliás, como esta questão da Morte impendente aparece dada no filme, por exemplo [talvez máximo] na sequência-chave do duelo final que ilustra esta "entrada": uma cena onde a sombra, as trevas e uma angustiante solidão dominam quase obsessivamente tudo, anunciando já o fim da era que 'Wilson', os 'Ryker' e o próprio 'Shane' corporizam.
Há quem censure ao Cinema de onde "Shane" emerge, temporal e cultu[r]almente, o ser sempre, de um modo ou de outro, o Cinema da renúncia e, num sentido muito subtil, da auto-repressão, um cinema auto-censório, por assim dizer.
[Veja-se, por exemplo, como Stevens e Lean, com um continente inteiro e referências históricas, sociais, cultu[r]ais, etc. completamente distintas, coincidem, ainda assim, na ideia [no topo] da impossibilidade de dois amores que, extremamente afirmativos embora, violam as regras de uma moral onde o dever se impõe sempre à vontade e especificamente num sentido assumidamente sexual ao desejo.
Eu, aliás, sempre vi em "Shane", entre várias outras coisas [todas elas interessantíssimas, aliás] uma espécie de epígono muito subtilizado do mito de Romeu e Julieta em que a coacção familiar foi substituída pela noção já francamente interiorizada justamente do dever, da assunção de uma ética].
É uma crítica que permite ligar, por exemplo, um "western" [por muito mais do que... mais do que um "western" que o filme de Stevens seja---e é!] como "Shane" a uma obra-prima realizada em Inglaterra por um não menos extraordinário realizador, David Lean, a partir de uma peça curta que nada ou à partida muito pouco tem em comum com um "filme de cowboys": "Brief Encounter", [brilhante!] adaptação cinematográfica da peça "Still Life" de Noel Coward.
Pessoalmente, devo dizer que discordo em absoluto da crítica, assim apresentada---e formulada deste modo tão simplista, digamos assim.
Discordo, não obviamente da existência de claros mecanismos auto-repressores perfeitamente reconhecíveis assimilados pela narrativa quer num quer noutro dos filmes em causa mas da irrelevância antroplógica e cultu[r]al profunda dos mesmos.
Ou seja: eu admito que se trate, num plano mais imediato e mais restrito, da integração na ficção de traços cultu[r]ais estáveis associados à visão essencialmente dualista característica da cosmovisão judaico-cristã e ao modo específico como esta lida com o corpo e com as suas funções [designadamente as de natureza especificamente sexual ou até, no caso particular da vertente puritana, genericamente sensual]; isso----essa osmose e/ou assimilação natural dos paradigmas abstractos de representação da realidade próprios da religiosidade tópica de cada cultura pelos modelos ficcionais correspondentes, parece-me, aliás, evidente.
Agora, eu creio, de igual modo, na, chamemos-lhe "estabilidade trans-histórica" [e até, num certo sentido antropológico possível, meta-histórica] de determinados modos fundadores, muito mais antigos e profundos, que se prendem com os mecanismos psíquicos resultantes da necessidade de os indivíduos se adapatarem a novas formas objectivas, física ou materialmente estabilizadas, de organização das sociedades humanas; modos esses que permitem, penso eu, aproximar o genericamente cultu[r]al do especificamente sacro.
Ou seja: não há sociedade sem repressão e, portanto, não a há sem auto-repressão.
A sociedade resulta do equilíbrio entre pulsões expansionais e outras equilibradoras que conservam essas em níveis socialmente assimiláveis e integráveis.
A minha tese é que as sociedades como os próprios indivíduos adquirem formas em larga medida inconscientes e mais ou menos estáveis de recolher essa informação, esse saber necessários àc estabilização das comunidades e que utilizam tanto o sacro como o ficcional para a fazerem circlar no interior do todo social, acabando por conduzir à fixação de determinados "topos fundacionais" que, perdida a respectiva base funcionalm, se convertem em abstracto em Cultura "pura".
Pessoalmente, acho que é esse mecanismo progressivamente desfundamentador de um saber socializante essencial que explica, em última instância, antroplógica e, de algum modo, realmente a presençav de traços estáveis comuns nas diversas culturas e de um vasto conjunto de modos e maneiras [Cf. por exemplo o topo da "ressurreição" e/ou da morte iniciática em universos cukltu(r)ais de tipo mais abertamente gnóstico e exotérico ] envolvendo todos eles esta ideia de "morte possibilitante" ou mesmo de "auto-mutilação possibilitacional".
É uma tese minha que vale o que vale mas a propósito da qual eu me permito supor que existe nela alguma probabilidade, chamemos-lhe "educada e/ou tética viabilidade".
Eu defendo que é essa estreita ligação do topo em causa, em sentido geral, a algo de verdadeiramente essencial na formação das sociedades humanas que explica que ele seja, sempre, de um modo ou de outro, percebido como algo de admirável e de nobre e, nesse sentido, claramente positivo.
Nós admiramos o sacrifício de 'Shane' como admiramos o do médico representado por Trevor Howard em "Brief Encounter".
É perfeitamente reconhecível num caso como noutro o modo como as culturas ainda hoje usam o topo da 'morte sacrificial' [que é, como digo, também a 'morte possibilitacional'] como forma de se auto-consolidarem.
Não excluo de igual modo a hipótese de existir um outro fundamento, de natureza biofilogenética mais profunda ainda, para o próprio topo---um que passe pelo que poderíamos talvez designar por uma "geneticização" específica, um resíduo pré-consciencial, de um saber ancestral associado aos ritmos naturais, especificamente sazonais que não se tivesse completamente perdido na fase em que o real se "conscienciou".
É uma outra hipótese adicional que admito, em qualquer caso.
Em termos genéricos, a minha tese é que as formas concretas da cultura não são, em caso algum, completamente arbitrárias, derivando algumas delas, pelo menos [alguns topos particulares dentro delas] do modo como a própria realidade tal como hoje a conhecemos se formou ou, melhor dizendo, se foi formando.
Seja como for e a admitir a tese da natureza expansional e do carácter concêntrico da realidade como todo, "Shane", de George Stevens, é um exemplo notabilíssimo do modo como isso, esse tipo de pulsão primária, pode converter-se por fim em Arte.