Agora, se querem ver um momento de Cinema simplesmente prodigioso, concebido rigorosamente como uma grande tela ou um extraordinário poema---para não dizer como um trecho musical, um andamento sinfónico, um acto de ópera; um exemplo absolutamente perfeito de timing [de jogo ou teoria de timings encadeados, concêntricos, interpotenciados, organizados num todo orgânico globalmente, no mínimo: dificilmente ultrapassável] onde tudo, dentro e fora dos corpos, dos rostos, das posturas em cena funciona de um modo maravilhosamente simples mas absolutamente perfeito, ideal, onde até o absurdo parece, bruscamente lógico, perfeitamente racional e até [sublime toque final de génio do verdadeiro exemplo de narrador que montou aquilo tudo] pura e simplesmente inevitável; se querem mesmo ver isso concretizado num fragmento autenticamente imortal de Cinema, vejam-me esta sequência de "Rio Bravo" de Hawks, filme do qual, a propósito da banda sonora, ela mesma, notabilíssima de Dmitri Tiomkin.
Permito-me chamar a atenção para os ritmos dentro da cena genialmente manejados por realizador e actores.
A cena contém dois "baixos", duas "descidas" de tom absolutamente fulcrais para "puxar" o efeito final: não esqueçamos que 'Dude'/Dean Martin é um alcoólico que começa precisamente na altura a recuperar e que toda a gente vê nele ainda o "borrachón" que todos lhe chamam e, se começam por hesitar na possível reapreciação da sua persona, quando o vêem entrar no "saloon" armado [repare-se no pormemor cinematográfica e, de um modo mais lato, semanticamente perfeito, da mudança de campo quando Wayne entra e, qual anjo tutelar---que, de resto, é ao longo de todo o filme na exemplificação de uma daquelas "amizades viris" tão "hawksianas"---bate com a porta produzindo um primeiro referencial sonoro mas, de igual modo, sémico, para a cena]; não esqueçamos, dizia, que 'Dude' está, na prática, a ser julgado, que dos seus mais pequenos gestos está, neste momento, tudo, no fundo, dependente e registemos o modo genial como Hawks e Martin "dão" isso, essa suspensão angustiada e angustiante do próprio Tempo [que parece, por segundos, 'tender para o infinito'] no écrã.
E admire-se o modo como Dean Martin se move em cena, primeiro deliberadamente desajeitado, tentativo, hesitante, transmitindo, precisamente, por mímica o que a cena tem---o que ela deve ter!---de frágil, de inconcluso, de suspensivo e, por conseguinte, de denso mas, também, de [quase insuportavelmente!] tenso.
Note-se como o rosto e a subtilíssima deslocação da postura física assim como a somra que perpassa fugazmente na mímica facial de Wayne pontuam, de forma absolutamente soberba, a inquietação, a [quase, apenas?] fisicamente dolorosa antecipação do fracasso.
Mas é, sobretudo, Dean Martin, andrajoso e hesitante porém sempre profundamente digno no modo como assume o risco de ir até ao fim com aquilo que é, na realidade, uma prova [e uma provação!] uma e outra, inimaginavelmente loucas pelo seu conteúdo em determinação, em dimensão humana e, de um modo geral, em bravura ["guts", dirá, noutro momento, não escondendo a admiração essa figura soberba, paradigmática, definitiva, de "sidekick" que é "Stumpy"/Walter Brennan]; mas é, dizia, sobretudo Dean Martin quem "segura" um projecto de sentido geral para o que aparece no écrã: é dele o mérito de as duas "descidas" agónicas que a cena comporta terem resultado de forma verdadeiramente perfeita e é dele o mérito do modo como "segura" om pormenor final envolvendo a recolha da moeda, onde a sequência inicial é citada e de onde emerge, perfeitamente simbolizada, a ideia do renascer de 'Dude', do seu regresso por direito à dignidade.
Ao menos, como vontade---uma vez que, como é sabido, o processo global envolverá outros momentos menos conseguidos antes do triunfo final.
Registe-se também o modo como Hawks "funde" [é o termo] de um modo espantosamente eficaz e brilhante, a necessidade ou a conveniência de filmar do ponto de vista físico do assassino [em "contre-plongé", em "picado", sobre 'Dude'] conseguindo, desse modo, fechar genialmente o registo da filmagem "em cima" de duas ideias em simultâneo, "dando", assim, com uma eficiência, de facto, notável, num único movimento, a sugestão de exposição e de perigo em sentido imediato, concreto a que está exposta a personagem mas, de um modo mais lato e mais abstracto, também potenciando a ideia básica da vulnerabilidade existencial do próprio 'Dude' associada à dúvida sobre se conseguirá ou não sair com sucesso da "persona" de "el borrachón" que carrega consigo ['Pat' Wheeler faz-lho regularmente lembrar, "hammering in" como diria um inglês ou um americano, a ideia...] e impor-se, finalmente, como Homem.
A angulação, por seu turno, transmite [muito à maneira do velho 'expressionismo' alemão] a sugestão abstracta de inquietação, de des-fixação, de incerteza, de angústia, de averticalidade intrínseca do real ["realismo subjectivo ou subjeccional"] que, como vimos, deve ressaltar claramente de toda a sequência até ao "turning point" crucial configurado, no, em si mesmo quase caricatural, pormenor do sangue a cair no copo que muda, por completo, a direcção do próprio sentido básico da sequência [num filme italiano cujo título muito francamente esqueci: que não consigo localizar e identificar na "Rede"---seria "Rosso e Nero" de Domenico Paolella, de 1955?---que foi um avôzinho distante do "western spaghetti" de Corbucci a Leone e que contava com as interpretações de Walter Chiari e Renato Rascel nos principais papéis, parodia-se mesmo expressamente a sequência].
Mas... vejam! Vejam a sequência, assim contextualizada [há curiosamente muito do duelo final de "Shane" nela...], no Youtube e depois, digam-me...
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