quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

"Democracia Autêntica e Democracia Funcional: Algumas Reflexões Pessoais a Partir de um artigo de Miguel Gaspar no «Público» de 16 de Fevereiro"


Há um artigo muito interessante de Miguel Gaspar no "Público" de 16.02.10 intitulado "antes e depois de José Sócrates" sobre o qual me parece útil tecer, desde já, algumas considerações .

O artigo é, como o próprio nome indica, sobre José Sócrates mas Sócrates é, no fundo, nele aquilo que menos interessa.

A mim, pelo menos, para quem José Sócrates muito pouco [e dizer "muito pouco" é já dizer francamente muito...] significa e o que significa é mau e deve, por isso, ser, o mais rapidamente possível, extirpado, nada mais.

Com ou sem "sinais preocupantes para os mercados", algo que ainda não há muito deixava Sarsfield Cabral, neste mesmo "Público" visivelmente inquieto e perturbado...

Não! O que me interessa no artigo de M. Gaspar é algo que tem vindo a marcar, pela negativa, de forma muito perversa mas consistente, aliás, a nossa percepção global da realidade---a começar pela política.

Verbera Miguel Gaspar no seu artigo do dia 19, com efeito, o modo como o entendimento que Sócrates tem do poder que, segundo ele, conduziu a um verdadeiro apodrecimento de uma suposta democracia, em última análise, mais ou autónoma e ideal, pura talvez, arquetípica, com cerreza, "neo-platónica" na sua relação descencional com a História, com os factos, com a realidade em geral---democracia referencial essa onde uma série, realmente preocupante de medíocres... "eticamente desinibidos e despachados" [para, relativamente a alguns deles não dizer outra coisa pior] teriam vindo a deixar a marca indelével da sua inépcia e da sua "desinibição moral" pessoais.

Ora, se Sócrates é politicamente inquietante e Santana Lopes, por exemplo "felizmente nunca existiu"; se Guerres foi um equívoco politicamente dispendioso e Barroso tão mau que só premiando-o o País conseguiu ver-se livre dele, a verdade é que aquela democracia ideal e, sobretudo autónoma de que Miguel Gaspar parte para a sua compreensivelmente inquieta análise do "sucatismo/socratismo" político ainda em vigência entre nós, tal como o tal Lopes de que atrás falo embora num sentido diferente, ela própria, nunca existiu.

A "democracia" moderna é, na sua in/essência [há que olhar a realidade e especificamente a História de frente, sem medo das palavras ou das ideias que elas devem sempre, em todos os casos, veicular] uma hábil e, sob diversos aspectos, eficaz "invenção" do grande capital financeiro [industrial e, depois, pós-industrial], herdeiro universal da burguesia saída em triunfo do segundo estádio das Revolução Francesa que foi a Industrial inglesa.

Se quisermos perceber a História que hoje somos levados ou nos fazem viver há que começar inevitável, incontornavelmente por aqui.

Não há outra hipótese.

O sonho dessa grande burguesia financeira que se foi por formando por... "decantação" contínua do magma social, sociológico [e político, claro] que derrubou mais ou menos simbolicamente a aristocracia em '89, em França; o sonho, dizia, dessa nova classe que se foi gradualmente formando a partir de movimentos... "tectónicos" sucessivos ocorridos no interior da massa social e sociológica referida; o sonho de um "capitalismo total" ["totaler Kapitalismus", um termo inexistente mas uma ideia bem presente ao longo de vários anos, um termo por mim decalcado de "totaler Krieg", um título---e uma ideia---de von Ludendorff], um "capitalismo" que "fosse da economia à [respectiva] política"; que fosse daessa mesma economia àquilo a que chamo o respectivo "revestimento politiforme" instrumental; o sonho em questão veio a dar como resultado a tragédia de 39-45 e a necessidade de operar drásticas alterações de natureza táctica e estratégica nesse âmbito "politicamente possibilitador"---nessa "coroa instrumental" funcionalmente "política" que foram os autoritarismos dos anos '20 e '30 cuja impraticabilidade final a guerra ou as guerras [foram duas, como se sabe] e as revoluções sociais e políticas a que elas conduziram [na Rússia mas, de igual modo, em França e na Alemanha, por exemplo] veio tragicamente demonstrar.

1945 é, com efeito, um "vértice" claro da nossa História ocidental.

O capitalismo percebe que levado "numa peça única" da economia à política sem interrupção gera uma inevitável falácia de composição que leva a prazo à impraticabilidade material de todo o 'modelo', no seu conjunto.

O grande capital económico-financeiro alemão a quem Hitler deve o ter sido chanceler e a quem o mundo deve, na realidade, a tragédia da II Guera mundial [o grande capital financeiro alemão relativamente ao qual por exemplo, Simon Wiesenthal em "Os Assassinos Entre Nós" recorda o modo cínicamente impiedoso, maquiavélico, como "tirou o tapete" a Hitler quando este perdeu a utilidade por ter perdido a capacidade para possibilitá-lo ulteriormente]; esse grande capital financeiro alemão, dizia, viu-se, a dado passo, forçado [ele que, repito, depois de ter purgado o N.S.D.A.P. da componente "callejera", tipo Röhm e S.A., demasiado pouco "respeitável" mas que tão útil fora no combate à esquerda, tinha "cooptado" Hitler e os nazis como "parede política" sólida---esgotada a utilidade temporária anterior de Bernstein e da sua sempre "disponível para conversar" "social-democracia"---]; o próprio grande capital financeiro alemão, dizia, viu-se forçado a "democratizar-se funcionalmente para sobreviver".

Fá-lo---toma a iniciativa, insisto, ele próprio, muito... "lampedusianamente" de fazê-lo---porque percebe e quando percebe que a melhor maneira de conseguir fazer triunfar uma ideia [como um projecto inteiro de História] é levar aqueles a quem essa ideia ou esse projecto se quer impor a persuadirem-se de que... a ideia é sua.

É por isso que eu digo que a "democracia institucional" moderna---o seu paradigma teorético e o seu uso prático consistente---são "uma grande invenção" da economia.

A "democracia institucional" moderna nasce como, de facto e até de direito, um capítulo específico, próprio, da economia---nasce para ser um capítulo da economia--- e só, no fundo "por acidente" está na Política assim como só por grave erro ou "paralaxe metodológico e analítico" erro pode ser aceite pelos historiadores e pelos analistas em geral como estando lá incluído.

Nasce da economia.

Nasce para servi-la onde outros modelos falharam e porque esses outros modelos falharam.

Não nasce como a sua antepassada remota grega teórica como coisa-em-si, como modelo de organizacionalidade política concebido para responder perante a Política---que é como quem diz perante a Cidadania.

Não nasce como expressão de desejo organizacional de uma qualquer elite teórica civil independente.

Nasce como uma estratégia auto-possibilitacional concebida pela base, pela infra-estrutura económica do sistema para protegê-lo de "suspresas" de natureza reaccional, social e política.

Quem não perceber tudo isto; quem tiver ilusões relativamente à própria génese das formas ditas "modernas" [do pós-guerra] de "democracia, não percebeu nada dessa mesma guerra e não percebe, num plano mais lato, o que quer que seja de História, a verdade é esta.

Quando Miguel Gaspar diz, no seu texto do dia 16 que, com Sócrates---pobre paródia mal-amanhada de ideólogo e renovador teórico do capitalismo político neo- ou pós-moderno!--- "o poder controla os negócios mas não pode ser ocupado sem o ámen dos negócios"] julgando talvez estar a falar de uma realidade nova ou relativamente nova, exclusiva de Sócrates e do grande capital económico-financeiro nacional que ele representa aquilo que está, na realidade a fazer, é o retrato fiel de "uma certa História" que já aconteceu há oitenta ou noventa anos atrás, pelo menos.

É por isso que eu comecei por falar de disfunções possíveis na nossa percepção específica da realidade, a propósito de posicionamentos analíticos que partam da ideia utópica ou mesmo, "all things considerded", distópica, infundadamente idealista da "democracia", concebida como algo, no fundo, anterior à História e exterior a ela.

O problema começa [ou tem, pelo menos, expressão necessária] no rigor terminológico.

Em bom rigor, sempre o disse, nós não vivemos há muito [se é que alguma vez vivemos] em "democracia", no "Ocidente": vivemos em "democracia funcional", que é uma coisa não apenas substancial mas, sobretudo, substantivamente diferente.

É que nós, vivendo em "democracia funcional" [e sendo nós mesmos "cidadãos funcionais" dela: estude-se um só momento que seja e mesmo muito pouco atentamente a legislação portuguesa actual, no domínio do trabalho, por exemplo] nunca saímos da economia quando imaginamos agir [ou pensar] politicamente.

Não há outro modo de dizer: a "democracia" de hoje, tal como a conhecemos é, desde a sua base, pela sua génese particular ["Sócrates or no Sócrates": Sócrates é um mero incidente sem grandeza e, volto a dizer: no fundo, sem qualquer interesse especial em tudo 'isto'] uma mera ilusão de óptica e, por isso, o é tantas vezes também uma outra... "de ética".

[Imagem "gentilmente cedida" por yuzuru.wordpress.com]

1 comentário:

  1. Socrates matou a democracia em portugal, e ainda nem começamos a pagar o preço a serio.

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