domingo, 14 de fevereiro de 2010

"Monangambé"


Não resisto a um "roubo" que é, porém, na realidade, um triplo tributo: ao Poeta António Jacinto/'Orlando Távora' (1924-1991) [que aqui constrói um documento---muito mais do que de um poema é, na realidade, disso que se trata: de um documento verdadeiramente arrepiante de clareza, um 'objecto escrito' construído quase exclusivamente com sangue e carne viva em vez de metáforas!]; a Rui Mingas que o musicou e cantou e, por fim, ao Samuel que, no seu inestimável "Cantigueiro" o reapresentou, na voz cristalina de Lura.

Falo de "Monangambé", uma canção que nunca consegui ouvir sem um nó na garganta e de que aqui deixo, sem mais comentários, o texto "roubado", como comecei por dizer, do mágico "baú" do Cantigueiro: tudo o que sobre ele, poema, pudesse dizer, só poderia "sobrar".

Experimentem, um dia, ouvir e, depois, logo me dizem...

E, já agora, façam como na ópera: ouçam com o libreto aberto à frente e... arrepiem-se como eu!...


Monangambé

(António Jacinto/Rui Mingas)


Naquela roça grande
não tem chuva
é o suor do meu rosto
que rega as plantações;
Naquela roça grande
tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue
feitas seiva.

O café vai ser torrado
pisado,
torturado,
vai ficar negro,
negro da cor do contratado.
Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo?
quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia
ou o cacho de dendém?

Quem capina
e em paga recebe desdém
fuba podre,
peixe podre,
panos ruins,
cinquenta angolares
"porrada se refilares"?

Quem?

Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer?

Quem?

Quem dá dinheiro
para o patrão comprar
máquinas,
carros,
senhoras
e cabeças de pretos
para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande
ter dinheiro?

Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:

Monangambé...

Ah! Deixem-me ao menos
subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo
e esquecer
diluído
nas minhas bebedeiras...

Monangambé...

António Jacinto (Poemas, 1961)


[Imagem extraída com vénia de antoniomiranda.com]

4 comentários:

  1. Ler já me arrepiou, mas fizeste-me vontade de ouvir !
    Boa noite, Carlos!

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  2. Ouve, ouve, Ana---e, depois, por favor diz-me!...
    Na voz do Mingas ou na da Luna, vale a pena!
    São abordagens vocais distintas mas qualquer delas é, a seu modo, uma experiência única.
    Ouve e não te esqueças de me dizer, depois, o que pensas desta Arte feita "com as tripas, os músculos---e o sangue"...
    Beijinho!
    Carlos

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  3. Fui ao YouTube e já ouvi as duas versões. São as duas excelentes, mas, para este poema, parece-me que a voz do Rui Mingas é a mais adequada. Torna as palavras ainda mais intensas! Que achas?
    Um beijinho, Carlos.

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  4. Eu também acho, Ana! Aliás, essa é que é a voz que, para mim, imediatamente "vem colada" à memória da canção, independentemente de considerar a voz da Luna muito maleável e harmoniosa.
    Talvez possamos entender que a do Mingas era a versão "de combate", "em tempo real", uma versão dura e claramente "de intervenção" [como à época se dizia] e a da Luna configure mais um olhar melancolicamente distante sobre um passado de que temos todos de envergonhar-nos como País quando gerou realidades como esta.
    A verdade é que nunca deixo de literalmente acabar sem a voz embargada quando oiço uma ou outra das versões.
    Mas, de facto, mesmo sem querer, reporto sempre, de um modo ou de outro, a da Luna à do Mingas, é verdade.
    Mas é natural, acho eu: acontece a cada passo.
    Com as canções do Zeca, do Variações, do Adriano...
    Com certas áreas de Ópera, com "leituras" diferentes da mesma peça musical.
    Acontece até com a Poesia quando passa a Canção, não é?
    Mas ainda bem: o mundo, afinal, vive da diversidade.
    Fico é feliz por teres gostado, Ana!
    Beijinho!
    Carlos

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