sábado, 20 de fevereiro de 2010

"E Porque Falei de Música..."


... na 'entrada' que imediatamente se segue, lembrei-me deste "Luiz Piçarra", o "primo Luís" , como era conhecido lá em casa.

A Mãe chama-lhe, julgo, "Luís Raúl".

Recordo-me das romarias familiares para casa da minha prima Maria José que morava na Almirante Reis e era daos poucos membros da família que tinha à época televisão sempre que corria a notícia de que "o primo Luís" ia cantar lá.

Eu ouvia-o literalmente extasiado [os pianos do "primo Luís" eram absolutamente sublimes e ensinaram-me, sobretudo eles, duas coisas: a adorar canto lírico---um gosto que um outro familiar, outro Piçarra, tio, que morava no nosso prédio na Rua Palmira, ouvia ópera muito alto de um modo que se ouvia pela casa toda e tinha um gato chamado "Rigoletto" já me tinha comunicado mas que a voz do Luís transformou em algo deginitivo---e a ser do Benfica.

O meu primo Luís era do Benfica... "como quem vai à igreja".

Não creio que fosse fanático---nem na altura era, aliás, necessário: o Benfica ganhava tudo, para quê a gente preocupar-se?...

Ia-se ao futebol e apreciavam-se [saboreavam-se!] as vitórias.

Mas tinha-o por coisa natural, "a fact of life".

Cantava divinalmente aquela "coisa" seminal do "Ser Benfiquista" que, ainda hoje, me arrepia sempre que o oiço---eu próprio, como o meu tio José da Costa à ópera [que também oiço desse modo, de resto]---com o som muito perto do máximo a fim de ser possível captar todas as subtilezas e matizes de uma voz [e de um conjunto de emoções] verdadeiramente empolgantes e, a seu modo, únicos.

Da última vez que o vi, estava já indelevelmente marcado pela doença, a sua voz mal se ouvia e ia ser despejado de uma casa, curiosamente na Almirante Reis.

Era um homem vencido e conformado que esperava já, claramente, muito pouco da vida.

No modo simultaneamente cansado e resignado como falava parecia-se muito com o pai, o meu Tio Luís de quando me lembro dele, corpulento, bonacheirão, pachorrento---um homem para quem, aparentemente [não sei como o conseguia!] não havia verdadeiras desgraças.

Um homem que sempre me pareceu a imagem definitiva do "homem bom": um pouco pícaro e, para alguns espíritos mais graves e mais "respeitáveis", excessivamente despreocupado com alguns aspectos mais materiais e mais comezinhos da vida mas com todas as características básicas para ser uma espécie de "avôzinho da Heidi" para as crianças como eu...

Recordo-me do diza em que lá a casa chegou a notícia: "Morreu o Tio Luís!" e não quiseram dizer imediatamente à minha avó que era irmã dele.

Recordo-me tão bem como desse outro em que a minha casa chegou a de que "Morreu o Luís Piçarra!" e nós fomos ao enterro, um enterro envergonhado e quase anónimo onde o corpo que foi a enterrar envolto numa enorme bandeira do Benfica que ele guardava religiosamente para o efeito, já não era há muito o corpo do homem alto, elegante, admirado e incrivelmente popular que fumava De Rezske importado especialmente para Moura, para ele e que cantava divinalmente, como ninguém, um Alentejo mau, ingrato e injusto que, há muito já, o havia completamente esquecido.

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