quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

"La Passion de Jeanne d' Arc" de Carl Theodor Dreyer


Em conversa virtual com a Amiga Ava incidindo sobre o 'faraónico' "Napoléon" de Gance, veio à baila o nome de Dreyer.

De Dreyer que é um pouco o anti-Gance no sentido preciso em qu erecorrendo, por casualidade, ambos, à História e ao mitário franceses como tema de filmes seus, o fazem de modos que eu não hesitaria em considerar, sob inúmeros aspectos, completamente opostos entre si: Gance é uma espécie de pré-Cecil B. de Mille, autor em "Napoléon" de um filme premeditadamente épico ["extrovertido", lhe chamei na circunstância atrás referida] visual e conceptualmente visionário e sempre deliberadamente exuberante, populista mesmo, por vezes---a intenção de 'fazer monumental'---e "épater (et écraser!) le bourgeois" da época é óbvia em todo o curso do projecto].

"Napoléon" é, com efeito um filme cheio de 'frases visuais' [de 'períodos' inteiros!]surpreendentes, com um uso espantosamente brilhante e moderno da montagem [que já tinha, aliás, utilizado, de forma magnífica, por exemplo, em "La Roue" de 1922, para filmar o percurso alucinante do combóio] um filme que é impossível dissociar da sua componente estrita [embora não estreitamente] técnica [a câmara especial de André Debrie que vai permitir a Gance "estender o écrã" até um grau de amplitude material, espacial, completamenteb original e inédito na época e curiosamente "antecipar" a prática de saturar o écrã de informação espacial e temporalmente simultânea, processo de que uma certa televisão pop de hoje usará e abusará até à exaustão e ao completo "jamming" das próprias mensagens, fundidas muitas vezes indesejavelmente num único "blur"]; em suma, um filme poderosamente descritivo, vibrante, robusto e majestuoso muito mais reflexo do que reflexivo e incomparavelmente mais demonstrativo do que considerativo e, seja qual for o ângulo por que se considere, questionador.

Por sua vez opera num registo basicamente lírico, plasticamente arrebatador; um registo em que cada 'sílaba visual' é sempre gravemente considerada, sondada e questinada antes de ir tomar o seu lugar no "vocábulo" a que deve pertencer e este na respectiva "frase" onde é suposto que se enquadre, numa composição globalmente severa e rigorosíssima onde as "palavras visuais" pensam---reflectem com uma gravidade, uma austeridade, uma inteireza que é tanto estética como ética; uma severidade inquietante e sempre potencialmente ameaçadora [kafkiana: desde logo, a ideia de um "processo" já pré-sentanciado...] que se impõe decididamente muito mais à reflexão do que aos sentidos como tal.

É um cinema interior e, com frequência, torturado [com frequência, visualmente torturado] que tem consideráveis afinidades de espírito e até de forma, de concepção visual, envolvendo o uso da imagem e até, de algum modo demonstrável, da 'anti-imagem' [desconstrução do tempo narrativo] "para pensar e inquietar", com aquele que Ingmar Bergman, por exemplo, virá mais tarde a fazer.

Uma curiosidade um pouco marginal e anedótica [ou talvez não...] é o facto de Antonin Artaud, "Artaud le Momo", o teorizador do "teatro da crueldade"] ter entrado no elenco do filme na personagem de um dos juízes.


[Na imagem: sequência da "La Passion de Jeanne d' Arc" de Carl Theodor Dreyer]

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