Já aqui [ou, talvez tivesse sido no 'irmão' mais velho deste "Oeste", o meu primogénito "Quisto"] falei dele: de Jorge Brum do Canto, o realizador deste "João Ratão", de 1940.
Julgo recordar-me de, na altura, me ter referido a Brum do Canto para repetir o que já antes de mim tinha sido amplamente repetido, isto é, que foi um realizador que nunca cumpriu realmente o que um início muito auspicioso de carreira [primeiro filme 'de fundo': "A Canção da Terra", de '38] havia prometido.
"João Ratão" ["ratão=soldado do Corpo Expedicionário Português mobilizado para França e para a Flandres no âmbito da I Grande Guerra e "ratão"= "maroto", "ladino"] recentemente reexibido na RTP Memória é, ainda, no contexto da carreira do cineasta, um filme interessante [plasticamente, Brum do Canto era, de facto, um cineasta cultíssimo, tecnicamente competente e globalmente muito consistente]; original [o tema da I Guerra Mundial---para o qual foi, aliás, necessário construir cenários próprios, nos estúdios da Tobis, em Lisboa o que diz bem do comparativo "essor" do Cinema português na época, mau grado o ano cinematográfico não ter sido famoso: três filmes, apenas, no conjunto] nunca havia, que eu saiba, sido tratado num filme de fundo português e não conheço momento ou circunstância alguns da cinematografia nacional em que voltasse a sê-lo] e comportando excelentes momentos---de comédia, sobretudo.
'Sobretudo' embora, muito astuciosamente, Brum do Canto tenha tido a preocupação de compor, no filme, um mosaico de registos que vão do dramático [abertamente "folhestinesco", herdado directamente da matriz teatral do filme, embora Brum do Canto tenha conseguido disfarçá-la, por via de regra, muito habilmente] mas, é, de facto, no que tem de 'comédia' que o filme sobrevive, em larga medida devido à intervenção de um grande [e injustamente menorizado] comediante português, Manuel dos Santos Carvalho, que aqui, juntamente com um António Silva um pouco menos fulgurante do que o habitual, dá um contributo absolutamente irresistível para a composição de um duo de "sidekicks" ou "comedy reliefs" realmente notável.
Tenho para mim que é, de resto, aqui no cómico burlesco ou para-burlesco; na re/ construção [uma e outra vez tentada, muitas vezes, aliás, com invulgar sucesso!] de um tipo de portuguesinho aldrabão, pouco culto mas sempre 'débrouilard', cheio de 'lata' e bom humor, simultaneamente conformado e inconformado com a pobreza e a mediania em que invariavelmente vive [quando começa por não se conformar, a vida---e o cinema, os argumentistas e os realizadores deste...---acaba[m] invariavelmente por ensiná-lo a pôr-se "no seu lugar"]; tenho para mim, dizia, que é aqui, neste elemento de comédia [a que António Silva, Vasco Santana, Ribeirinho, Barroso Lopes, Santos Carvalho, sobretudo, deram um contributo verdadeiramente fundamental e determinante] que reside uma das grandes originalidades, pelo menos, ' relativas' e um dos grandes méritos [que efectivamente o são!] do justísssimo sucesso da comédia dita "portuguesa" ou "à portuguesa" dos anos '30 e '40.
A falta de uma verdadeira e sólida indústria cinematográfica a funcionar em permanência, criando hábitos de trabalho e mecanismos sólidos a todos os níveis terá contribuído para roubar ao cinema nacional as condições de estabilidade e de continuidade que propiciassem o nascimento, entre nós, de um Totó, por exemplo e, ao mesmo tempo, o de um Moniccelli e de um Steno [não o Steno realizador, que era medíocre, mas o Steno colaborador de Moniccelli] capazes de conferir a 'bonecos' que tanto de comum têm entre si, a dimensão social que aquele trio [Totó/Moniccelli/Steno lhe conferiram e que fica perfeitamente evidenciado em títulos absolutamente referenciais como "Guardia e Ladro" ou posteriormente, por exemplo "I Soliti Ignoti" onde se configura uma comédia neo-realista perfeitamente ao nível dos grandfes títulos rossellinianos ou viscontianos deste período].
Aqui, em "João Ratão", o 'boneco' fica, como disse, sobretudo, a cargo de um impagável Santos Carvalho [que, às vezes, faz lembrar, por exemplo, certas "coisas" de um Eduardo Di Filipo, com quem, aliás, se parece fisicamente ou até de um Aldo Fabrizzi pelo registo "composto" e caracteristicamente contido, hilariante sem deixar de ser sóbrio e 'jogar' muito no contraste, na contradição e na inteligência quer do actor, quer do público] actuando em parelha com um António Silva incomparavelmente mais exuberante e caracteristicamente mais expansivo e truculento.
A parelha [outra das qualidades do filme] funciona muito bem numa espécie de eco discreto de grandes referências mundiais do cómico 'polar' e assimétrico tipo Laurel/Hardy, Abbott and Costello ou Jerry Lewis/Dean Martin, entre tantas outras, anteriores, contemporâneas e posteriores] e fornece, como disse, o contraponto cómico [o citado "comedy relief"] à muito folhetinesca e [como "convém" ao bom "feuilleton"] previsível "historieta" amorosa onde, por uma vez, o principal interveniente está [quase mas não completamente...] inocente [e não tem, por isso, toda a responsabilidade] das peripécias em que se vê envolvido.
O 'João Ratão' do filme é uma espécie de "apanhado", de súmula ou de síntese ficcional do português simples e generosamente heróico dos livros escolares [e, numa perspectiva mais ampla, de um certo mitário heróico permamente e omnipresente no "cultuário" do salazarismo] habilmente cruzado com o gabarola inocente e atrevido q.b., algo pícaro mas, no fundo, respeitador dos valores estabelecidos, fiel e fiável, sempre generoso, que, para aquele mesmo salazarismo acaba de compor a figura do 'português médio', do homem do povo, do "monsieur Tout-le-Monde à portuguesa"; do "portuguesinho" muito latinamente indisplinado, acriançado mesmo, não-raro---o 'regime' adora ser 'paternal' com todos, da "metrópole" às "colónias", sobretudo nestas; o 'portuguesinho' que é, visto 'de cima', uma personagem sempre tendencialmente "desalinhada" mas que o 'regime' faz absoluta questão de "meter continuamente na linha", nos seus filmes, nos seus livros, nas suas escolas, etc. a fim de servir de exemplo e lição a todos os outros portugueses...]
Aqui é a Óscar de Lemos [que já tínhamos visto a fazer, curiosamente ele, de "side-kick" dos amores entre o 'Rodrigues' e a 'Bastiana' na "Canção..." ] sempre faceto, jovial e folgazão mas, também, sempre simpático que compete defender a personagem do herói onde curiosamente reverberam ecos sémicos que vinham já da "Canção..."
Nesta e desta, com efeito, a "lição" dada por um cineasta que tinha origens aristocráticas, que foi procurador à Câmara Corporativa salazarista e que faria, três anos mais tarde, em '43, por exemplo, uma melodramática [e muito sintomática] "Fátima, Terra de Fé", era a que se reportava ao motivo bíblico envolvendo o imperativo de ter fé e mesmo de "crer sem esperar provas" como paradigma ideal de crença.
Ora, que se pode dizer do "ratão" português, despachado à pressa, impreparado, para um Somme ou para um Verdun qualquer onde vai, em muitos casos, morrer sem saber exactamente por quê ou até mesmo rigorosamente onde, apanhado completamente desprevenido num jogo político onde a suposta defesa estratégica de umas distantíssimas e, para ele sobretudo, remotíssimas [em larga medida abandonadas, aliás, inteiramente à sua sorte] colónias e a afirmação geopolítica de uma jovem república acabada de implantar e que ainda mal 'se tem nas pernas' o convertem em simples peão que apenas à cega fé de estar a "defender a pátria" pode recorrer para se motivar; que, pois, se pode dizer deste "ratão", tendo tudo oisto presente senão que confere, afinal, expressão material a esse anti-S. Tomé dócil e crédulo com que igreja e regime sonham e sobre o qual este mesmo 'regime' assentou grande parte da sua política, quer interna, quer externa e a igreja oficial, aliada natural dele, o essencial da sua própria política de crescimento e consolidação institucional?
O filme, à semelhança das melhores comédias do período [que não são, de resto, assim tantas como tudo isso: o modelo de que partem---o equívoco desenvolvendo-se 'em espiral', herdado do 'teatro de boulevard' francês de que um Félix Bermudes, co-autor da opereta original ou, por outro exemplo André Brun, criador do libreto de "A Vizinha do Lado" de Lopes Ribeiro---é finito e esgota-se rapidamente] diverte sem ofender excessivamente a inteligência [está longe do primarismo retórico de uma "Revolução de Maio" de Lopes Ribeiro, piedosamente "esquecível"] mas também sem deixar de dar a perceber, "imedistamente por baixo" da anedota [da "chetória", como costumo dizer] as grandes constantes da 'cultura social e política' típica do 'regime': o respeitinho implícito pelas instituições e pelo seu carácter básica e desejavelmente imutável; o rígido aparelho social e sociológico da época; a severa hierarquia---a intocável separação---das classes; os tabus, todo o quadro, enfim, de imobilidade económica, social e política que o 'regime' pretende, a todo o custo conservar inalterado e que o filme [volto a dizer: sem ofender demasiado a inteligência de quem souber vê-lo com o olhar crítico que sempre se impõe, de um modo particular, quando se trata do cinema do 'regime'] em caso algum, põe em questão.
Pelo contrário, de facto.
Sem comentários:
Enviar um comentário